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Singrando mares desconhecidos

  • Foto do escritor: Teca Mendonça
    Teca Mendonça
  • 27 de abr. de 2020
  • 4 min de leitura

São tempos estranhos, singrando mares desconhecidas de um tempo de indefinições, ansiedades e riscos mortais. Em uma discussão feita em um grupo de estudos sobre humanização e saúde, refletíamos sobre o devir e o contínuo desafio da prevalência da técnica sobre o respeito ao humano. Este é um tema presente no momento atual frente ao desafio do Covid-19. Um dos participantes colocou: ‘O vírus virou o mundo de ponta cabeça e desmontou a ilusão de que controlamos tudo.’ E todos concordaram.

O vírus ataca o corpo e afeta o espírito, o que nos trouxe o questionamento sobre como olhamos o nosso corpo: olhando para o que lhe acontece mais da perspectiva externa do que interna. Fica a pergunta: o que meu corpo está dizendo para mim? Olhar só de fora leva a uma dependência exclusiva do cuidado vindo do outro. Com isto acabamos não nos responsabilizamos pelo nosso próprio cuidado. Vejo isto muito claramente na dificuldade de engajamento da população na quarentena e no entendimento que ao nos preservamos estamos também participando do cuidado do outro. Mas parece que está sendo difícil de entender e aceitar os fatos.


O corpo não é apenas uma máquina; nosso corpo é vivo e vibra com os nossos movimentos e um dos colegas lembrou que a Filosofia ajuda a refletir sobre esse corpo vivo. A narrativa pessoal afeta o ato, o compasso que implementamos à vida. Uma amiga sensível e sensibilizada com a situação cita esta ambivalência indivíduo/coletivo e alerta para a dificuldade de tentamos “vender” a importância do bem coletivo, do que podemos fazer para o outro, de como respeitar o espaço do outro, isto não toca muitas pessoas. Um exemplo claro é o caso da vacinação – dizer que é preciso tomar vacina não só para nos prevenirmos da doença, mas também para não atingir quem está perto, parece não sensibilizar muito. É difícil a percepção de que eu afeto o outro e sou afetado por ele.


A discussão continuou e levou ao tema da morte e a necessidade de um ritual de despedida. Nascimento e morte são também questões culturais. O nascimento é celebrado, mas temos muita dificuldade de lidar com a morte, como se ela não fosse a finalização natural de um ciclo de vida. A lembrança da morte de pessoas queridas sempre traz a sensação de um pesadelo. Mas, olhando com um outro olhar, vemos que também são momentos onde podem surgir narrativas emocionantes e curativas. Lembro da forma que as chegadas e partidas eram cantadas na Grécia antiga – o canto sob a forma de poema, sendo a morte cantada em verso para despedir e também lembrar quem partiu.


Outro tema: o medo - Além da tempestade lá fora, existe uma borrasca interna que começa a surgir no horizonte da alma em momentos quando sentimos que não estamos no controle da situação. O medo existe em todos nós; ele paralisa e desespera; traz uma sensação de tsunami. Mas até em momentos como esse pode surgir uma luz, uma direção, uma força, demonstrada por pessoas que nem imaginaríamos.


Em momentos de medo pode aflorar também o lado mais primitivo, selvagem e violento em muitas pessoas aparentemente tranquilas. Em tempos de Covid-19, lembrei de um evento que muito me revoltou - gente hostilizando profissionais de saúde a caminho de seus trabalhos, para cuidar de quem adoeceu. Existe um manto sombrio tecido com o entrelaçamento de medo, agressividade, egoísmo e negação que parece ter descido sobre nossas cabeças. Sei que é uma defesa, mas mesmo assim choca.


O antídoto perfeito seria um abraço amoroso caloroso, mas isto não é possível neste momento. Na ausência da possibilidade do abraço, podemos expressar nosso amor através de palavras de apoio, que desarma a atitude defensiva e agressiva.


Nossa discussão voltou-se na direção da a filosofia e para o filósofo Hans Jonas, que escreveu vários livros para falar de Ética e Técnica. Por exemplo, no capítulo 7 de seu livro Técnica, Medicina e Ética abordou a questão da responsabilidade médica: “um vírus está nos ensinando o que é essencial”. E olha que ele não estava falando do Covid! É um vírus que nos assusta pelo desconhecimento que nos impõe; por mostrar tão claramente que nada sabemos de muitas coisas. Ele está nos ensinando o que é essencial e nos traz de volta o princípio da responsabilidade de cada um, pois isto é que nos salva neste momento. Torna-se obrigatório o encontro da gente com nós mesmos. Esta é a forma de estar com o outro de forma estruturada.


Nesse momento lembramos de Machado de Assis quando ele diz que se trata do mesmo ser humano, submetido a outras condições. Esta é a hora em que encontramos o melhor e o pior de cada um. Muito do que Hans Jonas abordou veio para a realidade: moralidade e mortalidade. As questões morais deveriam incluir a lembrança de que vamos morrer. Não dá para fugir do fato que vamos morrer e seria interessante refletirmos sobre este fato e poder olhar para ele.


A negação da realidade, observada em uma parte da população, principalmente entre os mais jovens, e nos distancia de nosso papel de precisar pensar juntos em saídas. A reunião chegou ao fim e parecia que a tempestade passara. Saímos fortalecidos para enfrentar o novo desafio em pensar sobre nossa responsabilidade frente ao outro.

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